ESPECIALISTAS: Quando cobria o caso Silveirinha, em 2003, participei de uma daquelas conversas que ficam na cabeça do repórter até a aposentadoria. Estávamos, jornalistas e advogados dos acusados, esperando mais uma audiência na Justiça, e um dos defensores contou que, uma vez, foi procurado pela família de um traficante baleado, preso e hospitalizado. Ele não queria pegar essa defesa e, por isso, condicionou sua ida ao hospital, apenas para conversar, ao pagamento de R$ 10 mil. Recebeu, em resposta, R$ 10 mil e mais R$ 10 mil. Foi conversar, mas, ainda assim, resistiu. Pediu R$ 50 mil para entrar na ação, apenas como começo de conversa. Recebeu os R$ 50 mil e mais R$ 50 mil. “Aí eu peguei o caso, né?”, relatou o causídico, sorrindo. Não quero entrar aqui em julgamentos morais, mesmo porque defendo o princípio do direito à defesa, ao contraditório e à presunção da inocência. Mas acho que episódios assim têm que ser levados em conta quando advogados criminalistas, em meio a debates como o do aumento de penas, suscitado pelo martírio do menino João Hélio Fernandes, vêm a público dizer que o aumento das punições não compensa. Eles não são neutros, defendem interesses concretos, assim como os promotores públicos, policiais, religiosos, ONGs cidadãos – nessa discussão, ninguém é neutro. Aliás, em nenhuma discussão há inocentes. Isso deveria ser sempre lembrado pelos órgãos de imprensa, sempre tão zelosos ao ouvir “especialistas” que, em tese, saberiam mais que nosotros, comuns mortais.
'DITADURA': Imagine um país que regula sua concessões públicas de televisão aberta com classificação de horários –conteúdo “adulto”, com sexo e violência, não deve ser exibido entre 5n30 e 21h – e obriga os telenoticiários a ouvirem acusados de crimes e divulgar as suas versões para os fatos de que são acusados, a preservar identidades de testemunhas etc. Imagine que esse mesmo país não permite que políticos comandem programas televisivos, por exemplo, e tem regras até contra o assédio de repórteres a cidadãos em suas residências, preservando as vidas privadas das pessoas comuns da curiosidade pública. Essa “ditadura” fica na Europa, chama-se Reino Unido – e é inacreditável que ninguém escreva sobre isso neste momento em que artistas e diretores de televisão protestam no Brasil contra a suposta “censura” da portaria governamental que quer impedir que nossas crianças continuem a ser sensualizadas precocemente por cenas de sexo às 15h, por emissoras que depois, hipocritamente, veiculam reportagens sobre prostituição infantil e gravidez adolescente no Brasil. Quem tiver curiosidade, pode visitar o site do Office of Communication (Ofcom) britânico, em http:\\www.ofcom.org.uk (coloquei um link aí do lado). Como o Reino Unido tem um pouco mais de tradição democrática que nós, essa visita pode ser exercício dos mais didáticos...
IRRELEVÂNCIA: Declarações de advogados, juízes e juristas condenando a iniciativa de discutir o aumento de penas contra crimes violentos em meio à comoção nacional causada pelo martírio do menino João Hélio Fernandes dão a forte impressão de que o Poder Judiciário brasileiro flerta perigosamente com o risco de se tornar irrelevante. Enquanto os cidadãos das grandes regiões urbanas, sobretudo a do Rio de Janeiro, desenvolvem estratégias de sobrevivência diante do avanço da violência, nossos bacharéis parecem preocupados apenas com manter aposentadorias e extra-tetos que lhe foram legados por uma legislação malandra e em defender o direito apenas dos agressores, desprezando o sofrimento das vítimas e suas famílias. Pode ser apenas impressão, mas é isso que tem sido passado para a opinião pública do País. É básico, para entender a cultura brasileira, ensinam alguns de seus estudiosos, lembrar que, na transição do latifúndio para a cidade, nossa aristocracia rural muitas vezes repudiou o trabalho no comércio e na incipiente indústria, coisas de vilões, e se refugiou nos cargos públicos de nível superior na área jurídica, o que pode ter ajudado a dar à Justiça esse jeitão medieval que assumiu entre nós, em que a insensibilidade e o amor ao direito, espécie de escolástica, são grandes marcas. O problema é que a sociedade brasileira está se modernizando rapidamente, novos grupos sociais e políticos estão em ascensão – e o Judiciário ainda parece ligado ao passado. Mais um pouco, será considerado irrelevante e daí poderá passar a obstáculo – o que seria uma ameaça grave ao regime democrático no País.